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quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Ramalho e o mistério da praia da claridade

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"A Figueira participa do carácter que tem Coimbra, um pouco para pior, porque os estudantes que frequentam a Figueira são ordinariamente os piores, os mais broncos, os que não saem de Coimbra, aqueles em que os efeitos do vício universitário se desenham mais profundamente.

Estes senhores com o seu afectado desdém, com o seu mau ar de críticos, com o seu espírito de troça, e os srs. professores com a sua sobranceria catedrática, constituem o grande senão da sociedade da Figueira, sobre a qual destingem a sua cor especial.
E, não obstante, nenhuma outra praia em Portugal possui as condições desta para tornar agradável a estação dos banhos.
Batida do grande mar, tendo à direita a bonançosa baía de Buarcos e à esquerda os rochedos em que assenta o castelo de Santa Catarina, que defende a foz do Mondego, a vila da Figueira oferece aos banhistas incomparáveis condições.
A povoação é rica pelo comércio do sal e pela exportação dos vinhos da Bairrada.
Uma companhia edificadora tem construído casas agradáveis, em um bairro novo junto à foz do Mondego, em sítio elevado e sadio. Neste bairro há um hotel, Foz do Mondego, onde se recebem hóspedes a 1$000 reis por dia.
A vila tem ainda mais dois hotéis, o Figueirense e o da Praça Nova, um pequeno teatro, uma praça de touros e dois clubes: a Assembleia Recreativa, no bairro novo, onde se dança às terças e sextas-feiras, e a Assembleia Figueirense, no antigo palácio dos condes da Figueira, onde se dança à quinta-feira e ao domingo.
Além das soirées nos dois clubes, as senhoras costumam organizar concertos e bailes. A soirée é uma das grandes preocupações desta praia, e não será por falta de contradanças que os banhistas deixarão de se regozijar neste sítio.
As burricadas e os pic-nics a Buarcos, ao farol da Guia, ao palácio de Tavarede, vão-se tornando cada vez mais raros.
Por uma disposição superior, cujo alcance debalde nos esforçamos por atingir, é proibido o ingresso dos burros no interior da vila, o que não obsta a que lá entrem muitos - disfarçados.
O passeio predilecto dos banhistas é a Palheiros, pequena povoação de pescadores, a meio caminho de Buarcos, onde recolhem as redes da sardinha.
Na Figueira, entre a população fixa, que habita a antiga vila e frequenta a Assembleia Figueirense, e a povoação flutuante, que habita principalmente o bairro novo e frequenta a Assembleia Recreativa, não há hostilidades, mas existe uma forte emulação provinciana que se descarrega muitas vezes em pequenos episódios dignos de Dickens ou de Balzac.
A viagem da Figueira é bastante pitoresca, mas não isenta de incomodidades. Quer o viajante chegue a Coimbra às 3 1/2 horas da tarde, quer chegue às 4 horas da manhã, tem de esperar até às 6 horas da manhã ou até às 2 1/2 da tarde para poder seguir para a Figueira na diligência, que gasta seis horas neste caminho e pede 1$000 reis por cada lugar.
Na imperial da diligência, como artista, em companhia alegre; ou em carruagem descoberta, que se pode alugar em Coimbra, o caminho não parece longo, porque a estrada é boa e a paisagem lindíssima.
Entra-se na vila por uma estreita garganta que se alonga para o viajante como o bico de um funil. Se não é fácil a entrada pela foz do Mondego...a entrada em diligência pelo funil acima referido não é menos perigosa. Somente, pela via de terra é permitido ao viajante um expediente, que se não usa na superfície líquida, e vem a ser: desembarcar a distância respeitosa e entrar cada um na vila pelo seu pé.

Ramalho Ortigão in As praias de Portugal - 1876

Quando Ramalho Ortigão passeava pla praia da claridade o seu largo chapéu desabado e o seu bigode frondoso, à segundo império, nenhuma outra possuía então “as condições desta para tornar agradável a estação dos banhos”. Nesses tempos a Figueira era uma povoação “rica pelo comércio do sal e pela exportação dos vinhos da Bairrada”. Os banhistas ricos, de hotel e de salão, chegavam em Junho e por cá residiam até meados de Setembro; só em Outubro vinham os pobres, os gandareses, os banhistas de alforge - todos os dias pla fresca, regressando a casa pla noitinha.

Entretanto - embora se tenha esforçado sempre por se parecer com a imagem que quis ver do relato de Ramalho, e sempre sem reparar demasiado no seu óbvio acento irónico - a Figueira mudou. Foi mudando. Hoje em dia já nenhum banhista aqui reside de Junho a Setembro.

Recentemente Isabel Brites, presidente de uma pitoresca associação de restaurantes local, confiou a um jornal que “Estamos a ter, definitivamente, o verão mais baixo dos últimos anos”. E que “há menos turistas em permanência. Durante o dia não se consegue encontrar um lugar de estacionamento onde colocar o carro, mas de noite a cidade está devoluta. Aquilo que nós concluímos é que as pessoas vêm de manhã à praia e regressam a casa ao final da tarde; ou seja, só o banhista de alforge vem à Figueira - mas já não fica de Junho a Setembro; nem sequer para as soirées. O que é um mistério insondável, porque à terrinha não lhe falta animação.

Entretanto também foi revogada a proibição de entrada de burros na vila, o que é irrelevante porque a livre circulação - tanto de visitantes como de residentes, disfarçados - sempre foi um facto reconhecido que justifica plenamente a afirmação de que na Figueira é carnaval todo o ano.
A vila fez-se cidade. Já não tem teatro (nem pequeno nem grande), nem contradanças ou concertos, nem sal, nem vinhos da Bairrada para exportar, nem folha periódica onde o comércio local possa fazer publicar os seus anúncios (é notório, aliás, que a cidade já quase não tem comércio local).
Mas tem casino (uma catedral), praça de touros, cinema (quatro salas num buraco, num centro comercial), alguns hotéis, e muitos e muitos bares e restaurantes e cervejarias. E outras tantas grandes-superfícies-comerciais. Ah, ainda tem comboio para Coimbra. E, isto é claro e indiscutível, muito melhores acessibilidades rodoviárias do que no tempo do Ramalho.

Da ramalhal figura é que nem sinal. Nem uma placa, pequeno busto ou memorial. Nada. Nenhum vestígio do seu passo enérgico e da sua grossa bengala, inglesa, nem da sua ironia fina.


1 comentário:

cid simoes disse...

Perdôo-lhe o que escreveu sobre "os srs operários"